Rede Intersetorial é lançada para fortalecer a luta pela garantia dos direitos das comunidades tradicionais de Ilheiras e Ilheiros de Governador Valadares e Alpercata
- Salmom Lucas Monteiro Costa
- 18 de jun.
- 4 min de leitura
Evento marca avanço na articulação institucional pelo reconhecimento e valorização de um modo de vida profundamente enraizado no Rio Doce
Na última terça-feira (4) foi oficialmente lançada a Rede Intersetorial de Apoio às Comunidades Tradicionais de Ilheiros de Governador Valadares e Alpercata, em uma reunião que contou com a presença de representantes do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), instituições públicas, universidades, organizações da sociedade civil e de lideranças ilheiras.
A criação da Rede é uma iniciativa da 5ª Promotoria de Justiça de Governador Valadares, com apoio da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais Regional (CIMOS). A ação integra o programa Próximos Passos, parceria entre o MPMG e a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), voltada à efetivação dos direitos civis, sociais, culturais e ambientais de povos e comunidades tradicionais.
“A implementação da rede de diálogos, articulação e ação é essencial para o reconhecimento da dignidade dessas populações, com base no respeito às suas histórias, formas de vida e saberes”, afirmou o promotor de Justiça Mateus Netto Coelho, durante o lançamento.
Além dos pescadores e agricultoras das ilhas, estiveram presentes representantes da Sedese, da Universidade Federal de Juiz de Fora, da Defensoria Pública de Minas Gerais, da Ordem dos Advogados do Brasil, do município de Governador Valadares e da Assessoria Técnica Independente - Cáritas Diocesana de Governador Valadares (ATI CDGV).
Durante a reunião de lançamento, foi marcada a primeira reunião deliberativa da Rede Intersetorial para o dia 19 de agosto de 2025, quando será discutida a aprovação do regimento interno e a elaboração do plano de ação. A proposta é que a Rede atue de forma contínua e participativa, promovendo a escuta ativa, o diálogo entre saberes e o respeito às particularidades culturais e territoriais das comunidades ilheiras.

Povos ilheiros
O pescador e ilheiro José Alves, relatou na reunião a conexão da comunidade com o Rio Doce e os danos vivenciados após o rompimento da barragem de Fundão, em 2015. “O rio é a nossa vida. Ele garante nossa qualidade de vida, tanto nas ilhas como no leito. É lá que a gente planta, colhe, cria bicho. Depois do rompimento, o assoreamento tomou conta. A água invade as ilhas com facilidade. O que antes era fonte de renda e alimento, hoje mal produz. Mas ninguém tira o rio de nós. Não tem dinheiro que pague. O que queremos é nossa vida de volta.”
José Alves destacou ainda o papel da ATI e da CIMOS no processo de reconhecimento como povos tradicionais. “Sem o apoio da ATI e da CIMOS, a gente não teria chegado até aqui. Eles caminham com a gente, nos fortalecem. E agora com a Rede, esperamos conquistar o reconhecimento que merecemos”, refletiu.

A ATI CDGV, há mais de dois anos, acompanha diretamente o processo de busca de reconhecimento das ilheiras e ilheiros, que são comunidades que vivem nas ilhas do Rio Doce e fazem do rio seu sustento, sua morada e seu modo de vida. Em abril de 2024, a Comissão Local dos Ilheiros e Ilheira participou da adesão ao programa Próximos Passos, durante encontro realizado na comunidade da Ilha Brava, marcando o início de uma nova etapa na luta pelo reconhecimento como Povos e Comunidades Tradicionais. De lá para cá, foram inúmeras visitas técnicas do MPMG, por meio do programa, que a Assessoria Técnica Independente tem acompanhado e prestado todo o apoio.
“A ATI tem atuado no apoio à Comissão Local de Ilheiras e Ilheiros com o objetivo de fortalecer sua organização, promover o acesso à informação qualificada e contribuir para o reconhecimento de seus modos de vida como formas legítimas de existência tradicional. A participação na Rede Intersetorial reforça esse compromisso, ampliando os espaços de articulação com o poder público e os canais institucionais de diálogo. Acreditamos que o reconhecimento dos ilheiros e ilheiras como povo tradicional é fundamental para garantir a reparação de seus direitos e a valorização da relação histórica que mantêm com o Rio Doce”, destacou Wellington Azevedo, coordenador geral da ATI CDGV.
Reconhecimento enquanto povo e comunidade tradicional
As Ilheiras e Ilheiros tem reivindicando seu reconhecimento como povo e comunidade tradicional junto à Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (CEPCT-MG). Atualmente, a Comissão é o órgão responsável por certificar as categorias de tradicionalidade, por meio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social - SEDESE. No entanto, a categoria "Ilheiros" ainda não foi oficialmente reconhecida em Minas Gerais. Apesar disso, existe uma referência semelhante: os "Ilhéus", já reconhecidos pelo Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), como consta no Protocolo de Consulta aos Ilhéus e Ribeirinhos do Rio Paraná, atingidos pelo Parque Nacional e pela Área de Proteção Ambiental (APA) de Ilha Grande.
A reivindicação no Território 04 destaca que o reconhecimento institucional começa pelo autoreconhecimento, um processo de afirmação cultural e identitária. “Reconhecer e celebrar nossas tradições, práticas agrícolas e nossa profunda conexão com a terra e o rio Doce é fundamental para fortalecer o senso de pertencimento e a resiliência da comunidade”, afirmam lideranças locais. O apelo é claro: “Queremos ser reconhecidos por essa Comissão como Ilheiras e Ilheiros do rio Doce!”
A Comissão Local das Ilheiras e Ilheiros tem atuado de forma organizada, apresentando suas demandas em ofícios enviados à CEPCT-MG. No dia 30 de abril de 2024, foi protocolado o documento 007/2024, com a apresentação das principais reivindicações. Já no dia 11 de dezembro de 2024, o ofício 023/2024 relatou as ações desenvolvidas pelo coletivo ao longo do ano.
Um dos marcos desse processo foi a apresentação do Relatório do Diagnóstico Rápido Participativo, elaborado com apoio do Programa Próximos Passos. O documento retrata a realidade enfrentada pelas comunidades nas ilhas, especialmente os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em 2015.
De acordo com o relatório, as enchentes recorrentes trazem novas camadas de rejeitos que se acumulam nas ilhas, tornando o cultivo agrícola cada vez mais difícil e custoso. Os rejeitos também comprometem o funcionamento de motores de barco e ferramentas de trabalho, acelerando seu desgaste e elevando os custos de manutenção.
O diagnóstico revelou ainda que “grande parte dos(as) ilheiros(as) utiliza as ilhas como fonte de sustento ou complemento da renda familiar, conciliando trabalho, cuidado e convívio com outras ocupações, como a pesca”, o que reforça a importância desse modo de vida tradicional.
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