Mulheres atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão: entre violações e a luta por direitos
- Salmom Lucas Monteiro Costa
- 8 de mar.
- 8 min de leitura
Quase 10 anos após o rompimento, atingidas seguem na busca por uma reparação justa e integral pelos danos sofridos
O Dia Internacional da Mulher é a oportunidade de refletir sobre as lutas e desafios enfrentados pelas mulheres atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão. O rompimento não só provocou danos ambientais, sociais e econômicos graves na Bacia do Rio Doce e Litoral Norte Capixaba, mas também intensificou desigualdades de gêneros profundas e históricas.
Quase uma década depois, após anos de invisibilidade e dificuldades no acesso às indenizações e demais medidas de reparação, o Acordo de Repactuação do Rio Doce, homologado pelo Supremo Tribunal de Federal (STF) em novembro de 2024, trouxe a criação do Programa para Mulheres. Com um orçamento de R$ 1 bilhão, o programa tem como objetivo garantir medidas de reparação específicas para as mulheres atingidas.
As Instituições de Justiça (IJs) serão responsáveis pela governança destes recursos. Haverá, porém, a contratação de um ente para fazer a gestão e a operacionalização do programa. Entretanto, o documento da repactuação não traz maiores detalhes sobre a forma como as medidas serão implementadas.
A criação do programa no novo acordo surge como uma ação reparatória, tardia - mas em tempo -, para as graves violações, sejam físicas e simbólicas, sofridas pelas mulheres. Desde a data do rompimento, ocorrido em novembro de 2015, diversos estudos evidenciaram como os danos sofridos pelas mulheres foram particulamentes devastadores, como revelou o relatório “O Rompimento da Barragem de Fundão na Perspectiva das Mulheres Atingidas: uma análise de gênero”, elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em agosto de 2022.
A invisibilidade das mulheres atingidas
O estudo da FGV, baseado em rodas de conversa realizadas com 73 mulheres em 19 municípios atingidos, apontou que as mulheres foram particularmente prejudicadas no processo de reparação. Muitas perderam suas fontes de renda devido à interrupção das atividades econômicas locais, mas continuaram sobrecarregadas com o trabalho doméstico e o cuidado com familiares.
Outro problema identificado foi o modelo de cadastramento adotado pela Fundação Renova, que frequentemente classificava as mulheres como “dependentes” de seus maridos. Com isso, muitas ficaram excluídas dos processos indenizatórios e de auxílios financeiros, tornando ainda mais difícil a reconstrução de suas vidas.
O estudo da FGV também evidenciou o aumento da violência contra as mulheres após o desastre. Fatores como desemprego, a incerteza sobre o futuro e o aumento do consumo de álcool e drogas nas comunidades atingidas contribuíram para o agravamento dos conflitos familiares. Muitas mulheres relataram agressões físicas e psicológicas, além do abandono por parte de seus parceiros.
Na saúde, casos de depressão, ansiedade e outros transtornos mentais cresceram significativamente, agravados pela incerteza sobre o futuro e a falta de perspectiva.
Instituições de Justiça pediram indenização estimada em R$ 10 bilhões para as mulheres atingidas
Diante dessas violações, as IJs - Ministérios Públicos Federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo, além das Defensorias Públicas da União e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo - ingressaram com uma Ação Civil Pública (ACP) contra a Fundação Renova e as empresas Samarco, Vale e BHP Billiton. A ação, protocolada em junho de 2024, buscou responsabilizar as empresas pelos danos causados às mulheres e garantir reparações mais justas.
A ACP requereu que as empresas pagassem indenizações mínimas de R$ 135.552,00 por danos materiais a cada mulher atingida, além de R$ 36 mil por danos morais. Também solicitou um montante de R$ 3,6 bilhões em indenizações por danos morais coletivos. No total, a ACP foi estimada em R$ 10 bilhões.
A ação argumentou que a reparação conduzida pela Fundação Renova violou os direitos humanos das mulheres atingidas, com falhas como:
Invisibilidade dos Ofícios: Muitas mulheres tiveram suas atividades econômicas e sociais ignoradas durante os processos de cadastramento e compensação.
Dependência e Cadastro: As mulheres foram frequentemente registradas como dependentes em cadastros familiares, o que agravou suas vulnerabilidades.
Violência de Gênero: O aumento da violência doméstica e de gênero no contexto pós-desastre é um dos aspectos críticos abordados.
Danos à Saúde: O tratamento discriminatório e a sobrecarga de atividades resultaram em danos significativos à saúde física e mental das mulheres.
A fundamentação da ACP baseou-se em diversos documentos, entre os quais a Nota Técnica nº 02/2024, elaborada pela Assessoria Técnica Independente - Cáritas Diocesana de Governador Valadares (ATI CDGV). Mas, com a homologação do Acordo de Repactuação do Rio Doce pelo STF, todos os processos judiciais e administrativos anteriores do Caso Rio Doce foram extintos, incluindo a ACP Violência de Gênero.
Nota Técnica e ações da ATI voltadas para as mulheres
A Nota Técnica (NT), enviada às IJs em maio de 2024 e que contribuiu na fundamentação da Ação Civil Pública, analisou os danos sofridos e fez recomendações para a reparação integral.
O documento foi elaborado a partir de informações coletadas do Registro Familiar aplicado no Território 4 (Governador Valadares e Alpercata) pela ATI CDGV, relatório “O Rompimento da Barragem de Fundão na Perspectiva das Mulheres Atingidas: Uma Análise de Gênero” da FGV e relatos das mulheres nos espaços participativos promovidos pela ATI CDGV.
A NT chama a atenção para o fato de que os prejuízos vivenciados pelas mulheres no âmbito do rompimento não foram reparados e novos danos sucederam em decorrência de um modelo reparatório que reproduz perspectivas machistas e patriarcais da sociedade.
Nesse sentido, o documento faz uma série de recomendações de medidas reparatórias de danos sofridos pelas mulheres, tais como acesso à informação, escuta especializada, reconhecimento de suas atividades produtivas (com atenção para a cadeia de pesca, agricultura familiar, comércio e prestação de serviço), atenção à saúde física e mental, acesso aos programas de indenização, revisão de cadastro, entre outras medidas.
Além da Nota Técnica, a ATI CDGV promoveu rodas de conversa voltadas para ouvir as mulheres atingidas e registrar suas demandas. Os espaços participativos, chamados de “Encontro com as Mulheres Atingidas”, fomentaram um ambiente seguro e acolhedor para que as mulheres pudessem compartilhar suas experiências, refletir sobre suas vivências e fortalecer sua participação no processo de reparação.
Mais recentemente, em janeiro de 2025, a ATI realizou também a formação “Promoção da Memória e Cultura das Mulheres Atingidas pelo Rompimento da Barragem de Fundão”, que reuniu atingidas com o objetivo de promover o reconhecimento e a valorização das memórias e vivências das mulheres no Território 4, com destaque para a importância de sua cultura e histórias. Além disso, a formação buscou discutir formas de preservar e transmitir essa memória e cultura para as gerações presentes e futuras.
Uma das rodas de conversa promovida pela ATI CDGV, com as mulheres atingidas. (Fotos: ATI CDGV)
O passado, o presente e o futuro na visão das mulheres atingidas
Apesar da repactuação e do recurso de R$ 1 bilhão exclusivo para as mulheres, a busca por direitos das atingidas continua. A efetiva implementação do Programa para Mulheres e demais ações previstas no novo acordo, dependerá do compromisso de todos os atores envolvidos para garantir que elas sejam devidamente reparadas e possam reconstruir suas vidas com dignidade e justiça. É nesse sentido que convergiram as falas das atingidas ouvidas pela Assessoria Técnica Independente - Cáritas Diocesana de Governador Valadares.

Josilma Vaz Vieira, trabalhadora da cadeia da pesca, falou sobre os sonhos que ainda alimenta e as violações enfrentadas, como as dificuldades de ser mulher em um ambiente dominado por homens. “Eu sou pescadora. Muitas vezes que eu ia dar opinião em alguma reunião, tudo que eu falava, por ser mulher, ouvia de homens que era bobagem, que eu não entendo de nada, que lugar de mulher é na beira do fogão. Eu já sofri muito com isso”, relatou.
Josilma conta que, mesmo em reuniões com a Samarco e a Fundação Renova, as mulheres eram tratadas como inferiores. “Eles davam mais prioridade aos homens do que as mulheres, tanto que até no recebimento dos recursos recebemos menos do que os homens, sendo a mesma categoria de profissionais”.
Diante dessas adversidades, Josilma buscou se fortalecer. “Eu procurava entender as coisas para saber explicar, interagir com eles e mostrar que como mulher, eu tenho os meus direitos e sei resolver as coisas”.
Ao falar sobre seus sonhos, Josilma compartilha o misto de esperança e saudade da vida que tinha antes do rompimento. “Meu sonho é ter minha vida de volta, ter minha casa, ter minhas atividades pesqueiras, vender minhas agriculturas, ter minhas coisinhas. Com essa repactuação, tenho que buscar os meus direitos. Não sei nem por onde começar, mas meu sonho vai além da reconstrução material, é estudar mais, aprender mais, defender mais os direitos das mulheres, ter mais força, ser mais apoiada e respeitada como mulher”, concluiu.

Aparecida Pereira, outra atingida, refletiu sobre a forma como o processo reparatório foi conduzido para as mulheres até o presente momento e destacou que as atingidas não foram devidamente reconhecidas. “Nesses anos todos, não houve reparação de fato para as mulheres atingidas. São vários relatos, em que percebemos que as mulheres sofreram e ainda sofrem muito”.
Sobre a repactuação, destacou a necessidade de que os projetos voltados para as mulheres sejam menos burocráticos, mais acessíveis e garantam que as próprias atingidas sejam protagonistas nesse processo. “É importante, extremamente importante, que esses projetos atendam de fato as mulheres e que consigam ser menos burocráticos. É essencial que os recursos cheguem até as mulheres, porque, se no processo reparatório isso não aconteceu, agora esperamos que aconteça para a promoção, autonomia e fortalecimento das mulheres, reconhecendo toda a sua trajetória de resistência ao longo desses anos. Para as mulheres, tudo é mais difícil, mas a gente continua lutando para que nossos danos sejam reparados de forma justa e integral”.

A atingida Lanla Maria espera que agora, com a repactuação e o orçamento destinado exclusivamente às mulheres, a justiça seja feita. “Que esse dinheiro destinado para as mulheres seja usado de forma justa na reparação das atingidas que não foram ressarcidas pelas suas perdas. Nesse Dia Internacional da Mulher, que a mulher atingida possa olhar com esperança para o futuro. É isso que a gente espera, um futuro melhor, onde as mulheres tenham direito, voz e não sejam mais violadas como foram até hoje no processo reparatório”, refletiu.

“O sentimento foi muita raiva, muita indignação”, afirmou a atingida Tânia Storck ao relembrar o rompimento e os danos provocados. “Precisamos que a justiça seja feita, que os culpados sejam responsabilizados, para que possamos ter o sentimento de que a justiça está sendo feita e que nossas vidas vão ser retomadas”. Tânia reforçou ainda a necessidade de ações práticas para restaurar a vida das mulheres. “Nós, enquanto mulheres, precisamos ter a segurança de ter saúde de novo, dentro das nossas casas, no nosso trabalho. Tudo isso precisa ser restaurado para nós. Mas, até agora, o que vemos é muita fala e pouca ação. Nós precisamos realmente de ação, de resolução dos problemas”

Joelma Fernandes, agricultora e ilheira, compartilhou suas expectativas em relação ao processo de repactuação, mas também denunciou as impunidades e desigualdades que persistem após quase uma década do desastre.
“No âmbito domiciliar, as mulheres tiveram que ficar no cadastro dos maridos ou dos pais, sem autonomia. Em um país que tanto fala da mulher, os nossos direitos ficam só dentro do caderno, não saem do papel”, afirmou. Joelma vê a repactuação como uma nova oportunidade, mas não esconde sua desconfiança. “Com essa repactuação, não é diferente. No meu ponto de vista, a gente sofreu impunidade, principalmente as mulheres. Agora, com esse um bilhão que está para vir, temos esperança. Somos brasileiras e a esperança é a última que morre”.
Ela espera que, desta vez, os recursos sejam de fato direcionados às mulheres. “A gente espera que as Instituições de Justiça acertem, que redistribua esse um bilhão para as mulheres atingidas e que possamos ser contempladas. Depois de nove anos e quatro meses de impunidades, uma reparação justa é o mínimo que se pode fazer, embora, uma reparação justa, de tudo, nunca vai existir, porque não teremos o Rio Doce de volta. Mas almejamos que esse um bilhão, separado especialmente para as mulheres após muita luta, seja bem aplicado.”
Por fim, Joelma reforça que a luta das mulheres não para e cobrou transparência no processo. “Na luta, a gente sempre vai estar. Por ser mulher, todo dia é um recomeço. Mas isso não faz a gente parar. Eles [Poder Público] poderiam aproveitar que estamos no mês da mulher e explicar como pretendem aplicar esse um bilhão. Tem muitas questões a serem respondidas e ficamos sem respostas. Mas lutar, a gente sempre vai estar na luta, todos os dias”, concluiu.
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